Avôs, um legado de amor
Postado por Luciana em 08 abril 2011

Falei recentemente aqui sobre as minhas avós. Lembranças acompanhadas de uma boa fatia de bolo de maçã.

Mas hoje não tem receita. Quero apenas falar dos avôs, que também foram presenças importantes na minha vida e na minha formação.

Meu avô paterno Olavo faleceu cedo, quando eu tinha 8 anos de idade, mas ainda assim tenho boas lembranças dele. Por um lado bastante rígido e cheio de manias, de outro um homem extremamente íntegro e justo. Curtia passear com os netos e foi com ele que andei de ônibus e de metrô pela primeira vez. Aposentou-se como Corregedor Geral da Justiça de São Paulo e me lembro de quando era estagiária de Direito e vi sua foto no corredor do Tribunal de Justiça, que orgulho que me deu. No Migalhas, o desembargador aposentado Adauto Suannes uma vez contou a seguinte história: “o desembargador Olavo Lima Guimarães, que foi Corregedor Geral da Justiça nos anos 50, costumava ‘fazer visitas’ aos juízes que trabalhavam na comarca da capital. Quando não encontrava o juiz na sala, deixava um bilhete sobre a mesa dizendo ao juiz que lhe telefonasse assim que voltasse do cafezinho. Quando o telefonema não era dado no mesmo dia, ele ‘aconselhava’ o tal juiz a requerer abono da falta dada no dia anterior”. Assim era meu avô 🙂

Mas o ensejo do texto de hoje é uma perda recente. Meu avô materno Roque Figliolia nos deixou nesta última semana, aos 99 anos de idade. Viveu tanto e tão bem que nos deu até certa ilusão de que seria eterno… E teve qualidade de vida e força para viver até alguns meses atrás, quando sua chama de vida começou a se apagar. Sua partida deixa muitas saudades, mas a recordação boa de que teve uma vida completa, formou uma família linda e ajudou incontáveis pessoas. Acho um verdadeiro privilégio ter usufruído da companhia do meu avô até meus 42 anos de idade.

Aos sete anos de idade ele perdeu o pai e sua mãe, viúva aos 28 anos, cuidou dos seis filhos com muita garra. Mais tarde, suas irmãs mais velhas foram trabalhar fora para que ele pudesse cursar a faculdade de Medicina na Universidade de São Paulo. Morando em São Paulo sozinho, duros tempos, um dia me confessou que deu até aulas particulares de francês para incrementar o orçamento: “Vô, mas eu nunca vi você falar francês!” E ele: “Pois é, minha filha, é que eu falo muito mal mesmo…” 🙂

Um homem contido, sério, mas de extrema bondade e generosidade. Exerceu a profissão de médico pediatra exemplarmente e jamais deixou de atender a um paciente, quem quer que fosse. Foi bastante rígido com as filhas, que colecionam histórias desta época. Minha mãe só podia sair com meu pai, na época seu noivo, se levasse o irmão de 12 anos junto… Uma vez meu avô abriu a porta para o tio Jaime, namorado da tia Inara, e foi logo recolhendo o buquê de flores que ele havia levado! Com o tio Walter, namorado da minha tia Célia, teve uma conversa ‘séria’ para saber quando seria o casório…

Minha lembrança mais legal dele foi a viagem que fizemos para Bento Gonçalves. Desde que tinha voltado de lá fiquei com muita vontade de levá-lo para conhecer o ‘berço’ da imigração italiana. Foi tão bom vê-lo curtindo cada momento do passeio, até em dialeto napolitano ele conversou com uma pessoa da cidade. Deve ter sido sua última viagem, isto foi em 2006, ele já tinha 95 anos! Foi um avô mais contido enquanto a vó Jurema era viva e mimava os netos, mas quando ela se foi de repente imbuiu-se de tal maneira de seu legado de amor e carinho que se tornou um avô muito próximo de todos os netos. Deixou um neto ‘xará’ médico que desde sempre o admirou e quis seguir seus passos, além de um bisneto também com o seu nome. E muitas lembranças e saudades em todos nós.

(agosto de 2008)

“Saudades dele… Durante esse longo período em que ele começou a adoecer, vim fazendo uma retrospectiva sobre a vida dele e toda influência que ele teve na minha. Desde ser médico, de ser sãopaulino, de não gostar de frango… Das inúmeras vezes em que recebeu amigos e familiares, atendendo em casa nos fins de semana e feriados. Nunca cobrava nada, seja de ‘gente fina’ do bairro, gente simples ou familiares dos empregados. Lembro dele contar as histórias da Medicina, das aulas de anatomia, do primeiro parto a fórceps que teve que fazer (com a passagem de trem já comprada para fazer a fuga em caso de insucesso). Da frustração por nunca ter tentado ser cirurgião só porque um professor um dia lhe causou um trauma enorme no centro cirúrgico após uma grande humilhação pela contaminação da cirurgia. Lembro bem do dia em que me deu seu jaleco branco de tecido grosso já bem amarelado, usei esse jaleco até acabar, com orgulho, nas aulas de farmácia, bioquímica e depois no hospital. E quando me perguntavam por que o jaleco estava amarelado e velho, já tinha uma resposta pronta… foi do meu avô, tenho que tratar dele direitinho, esse jaleco tem história. Da época em que estudei no Objetivo perto na casa dele só para depois das aulas ficar ouvindo seus causos médicos e sonhando em um dia quem sabe poder também ajudar as pessoas e ter histórias para contar. E das muitas visitas que me fez em Alfenas durante o curso de Medicina. Já mais adiante da alegria que teve quando passei no concurso para médico da Polícia Militar; dizia que eu estava realizando um sonho dele, já que se não pudesse ser médico, teria sido militar. Depois a época em que me perguntava todos os dias sobre nomes de medicamentos, para ver se ele ainda se lembrava deles. Nesta fase nossas conversas passaram a ser mais desgastantes para ele. porque já não conseguia mais lembrar de tudo e se cobrava demais para se manter atualizado. Grande vovô Roque… guerreiro até o fim, exemplo de vida pra mim, será que chego perto do que ele foi um dia?” (Roque)

Roque I, Roque II e Roque III (fevereiro de 2011)

“Entre tantas lembranças do vovô, lembro-me que ele me falava sempre quando era criança que eu era ‘encostante’, pois vivia me encostando nele, pedindo colo! E, depois, quando cresci e fui morar sozinha, ele me disse: “Menina, não sei como você gosta de morar sozinha… eu odeio ficar sozinho!” E eu acho que é assim que ele estava se sentindo nos últimos tempos, apesar de toda a família estar sempre, sempre, por perto. E agora devemos acreditar que ele não se sentirá mais sozinho, pois vai junto de sua amada e querida vovó Jurema. Pode parecer incoerente, mas apesar da tristeza e da falta que ele vai fazer (e que falta!), eu estou feliz e quero celebrar esta vida maravilhosa que ele teve e esta pessoa tão especial que ele sempre será para mim”. (Juliana)

“Tenho muitas recordações do vovô Roque. Era um homem honesto e dizia sempre que ‘se o malandro soubesse como é bom ser honesto, seria honesto por malandragem’. Meu avô não gostava de ir a igrejas ou discutir religião. Mas no íntimo do seu quarto, orava em voz alta e lia a palavra de Deus. Para mim é como se tivesse tido dois avôs em um só. Lembro de um avô bem bravo, que não deixava colocar os pés na poltrona ou que se ficasse de conversa ‘fiada’ ao telefone. Esse avô bravo sofreu uma grande transformação depois que a vovó Jurema se foi. Como ele mesmo dizia, virou um Leão sem jubas. Um novo homem, mas a mesma essência. Gostava de jantar cedo, no máximo às 18h30 e nesse momento aproveitávamos para conversar. Ele contava da sua família; de quando foi professor e colocou um aluno com carteira e tudo pra fora da sala de aula; da época de faculdade quando almoçava e pedia uma “água torneiral” para não gastar mais dinheiro. Duas épocas me marcaram bastante. Primeiro durante a novela Rei do Gado, essa novela trazia muitas recordações para o vovô e ele ficava contando suas histórias. E também durante o trabalho do Nonato (fisioterapeuta que trabalhou com meu avô e virou um amigo) com ele, pois sentávamos juntos, o Nonato contava seus casos… Era muito gostoso, o vovô ficava muito feliz com aquele momento. Chorar e relembrar faz parte. Mas me sinto feliz agora, pois já não aguentava mais ver meu avô sem poder se comunicar, sem ter o brilho e a alegria de viver. Faz parte da vida. Como ele mesmo dizia, começamos a envelhecer e morrer desde o momento que nascemos. Vovô Roque e vovó Jurema nos ensinaram um precioso e raro valor nos tempos de hoje, o valor da família! Tenho muito orgulho por fazer parte da família Figliolia”. (Danira)

“Além das histórias e exemplos há coisas mais corriqueiras que ficam na memória. Me lembro que, logo depois da morte da vovó, os netos solteiros (eu, Danirinha e Estêvão) fizemos um revezamento para dormir na casa dele e desta forma não deixá-lo sozinho nenhum dia, já que sabíamos o quanto ele detestava isso. Isto durou um ano. Dani e Este, vocês se lembram do ferrolho na porta da casa, que “baixava” todas as noites, às 22h? E, teoricamente, quem não estava em casa ficava para fora… Pelo menos era o que ele dizia, mas sinceramente nunca fiquei para fora, e muitas vezes cheguei depois das 22h! Depois de um tempo ele percebeu que isso não funcionava mais e desistiu do ferrolho.  Enquanto morei com ele, passava as noites de quarta-feira assistindo o jogo de futebol na TV. Veja bem, não gosto de futebol! É óbvio que no meio do primeiro tempo já estava dormindo no sofá e meu avô me acordava no final do jogo para ir dormir, acho que só a companhia já deixava ele contente.  São muitas lembranças e muito que aprendi com ele… O que todos nos aprendemos com ele”.(Maíra)

Como disse seu neto Estevão, foi uma honra ter sido sua neta, vô. Vai com Deus e descanse em paz.

(Natal de 2008)

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13 Comentários
  1. Lindo texto, linda homenagem. Que me levou às lágrimas. Duas vezes. ( na publicação por engano e novamente hoje).

  2. Lu, que homenagem mais linda e emocionante. Que sorte a sua ter convivido com seus avôs, especialmente com o seu avô Roque, que você pode curtir por tantos anos. Gostei muito dele, mesmo sem te-lo conhecido. E nas fotos ainda menino, ele é a cara dos seus filhos! Que lindo. um beijo

  3. Lu, lamento muito! Perdi todos os meus avós muito cedo, adoraria ter tido o carinho e a companhia deles até mais tarde. Grande exemplo esse 🙂

  4. Linda história essa sua, a familia e os avós são tudo de bom que temos e uma tristeza ve-los partir, eu sinto essa tristeza, por não poder viver mais coisas que vivi e senti com eles, ficam as recordações é verdade, mas a dor da perda essa também fica.
    Que bom que o seu viveu bastante e com qualidade de vida quase até ao fim, isso é muito importante.
    Beijinhos

  5. Ô, Lu, que post lindo! 🙂

    Uma das coisas de que mais tenho medo [e é um medo absurdo] é da hora em que eu tiver que me despedir do meu avô. Já o proibi (e à minha mãe) de qualquer doença grave e de morrer antes dos 120. Saudável como é, se tudo der certo, fica muito tempo aqui comigo.

    Uma graça o seu vovô e o que o Roque escreveu, gente! Muito, muito emocionante, mesmo.
    Ele povavelmente vai fazer falta, mas eu gosto de acreditar que agora é que a vida dele tá começando. E junto com a esposa, né? =)

    Lindo ele, linda você.

  6. Também fiquei muito emocionada e apesar de não ter conhecido nenhum dos meus avôs fico pensando no legado deles.

    Força e paz nesse momento!

  7. Lu,
    Como é bom saber que não ficaram apenas fotos na parede! Ficou um exemplo de vida, de compaixão, de doação, legado que acompanhará todos vocês.
    Bjs.

  8. Luciana
    Lamento a sua perda.Emocionei-me com sua estória. Seus avós são referencias e exemplos de vida digna. Só conheci um avô e uma avó mas por pouco tempo, por isso tento que os meus filhos usufruam da companhia dos avós.
    Um beijo

  9. Que lindo post. so conheci um dos meus avos, e infelizmente ele se foi embora quando eu era uma menina pequetita. tenho algumas boas memorias dele, me levando para o mercado. este teu post me encheu de saudades.

  10. Luciana,
    Sou Jornalista de um Registro de Imóveis em São Paulo e escrevo um livro sobre o centenário desse cartório. Pesquisando na net sobre Olavo Guimarães, Corregedor Geral da Justiça que fez uma correição aqui em 1964, e precisando falar sobre a pessoa dele em pequeno texto, ao ver o que fala de seu avô Olavo julgo ser a mesma pessoa e precisaria de sua confirmação. Você poderia entrar em contato comigo para tirarmos as dúvidas?

    • Oi Dalmo, o Olavo Guimarães é o meu avô sim, enviarei um email para você para podermos conversar a respeito.
      Atenciosamente,
      Luciana

  11. Luciana, eu não tive a ventura de conhecer os meus avós, mas tenho a ventura de ser avó e viver “momentos vovó”por duas horas de segunda a sexta, pois entendo que os dias não úteis devem ser dos pais. Trabalho duro durante 5 dias na semana, por duas horas, para que o filho do meu coração tenha momentos de inestimáveis valor.
    Seu relato me deixa feliz e com viva esperança.
    Abraços
    Vovó

    • Marilene, que bom ouvir isto! O convívio com os avós é inestimável e deixa lembranças pro resto da vida. Felizes aqueles que têm este privilégio. Um beijo grande,
      Luciana

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